Para muitos é difícil pensar na possibilidade de ficar sem internet, mas essa é a realidade de muitos locais no Brasil. Embora os serviços de banda larga fixa estejam presentes na maioria dos municípios, ainda há diversos vilarejos e áreas rurais que não podem contar com conexão terrestre ou mesmo sinal de celular.
- As redes neutras podem mudar a internet no Brasil
- Menos papéis e mais bits: o que muda com a Lei do Governo Digital
Para esse grupo de pessoas, a internet via satélite costuma ser a única alternativa para se manter conectado com o resto do mundo. Esse serviço já existe há algum tempo, mas só se tornou (um pouco) mais acessível nos últimos anos.
Internet via satélite continua mudando
O presidente da Hughes, Rafael Guimarães, explica ao Tecnoblog que o setor passou por profundas mudanças: “Tem uns 10 anos que o mercado começou a usar outra faixa de frequência para banda larga via satélite, a banda Ka. Até então o setor usava a banda C, que era caríssima, e a banda Ku”.
A Hughes é a principal operadora via satélite do Brasil. De acordo com a Anatel, a empresa encerrou março de 2021 com 275,1 mil acessos de banda larga fixa. O mercado também possui outra concorrente de peso, a Viasat, mas a companhia não divulga o número de clientes.
A evolução para a banda Ka representa mais do que uma sopa de letrinhas: Guimarães explica que, por se tratar de uma frequência mais alta, há mais espectro disponível e, portanto, maior capacidade. “Antigamente, há cerca de 10 anos, um satélite grande de banda Ku tinha 2 Gb/s de capacidade e custava US$ 400 milhões, incluindo o lançamento e seguro. Hoje, com a banda Ka, é possível ter equipamentos com 500 Gb/s pelo mesmo custo”, conta o executivo.
Essa capacidade é possível pelo fato da banda Ka reutilizar a frequência em diferentes regiões: “A banda Ka é análoga à rede celular: são várias células menores, com potência concentrada, uma do lado da outra. Com isso, é possível multiplicar a capacidade ao reutilizar o espectro várias vezes em locais distintos”.
O executivo comenta como era no passado: “O uso era bem restrito por causa do valor, então a equação de custo-benefício não valia a pena, pois era pouca banda por um valor muito alto”. Guimarães diz que que hoje é possível conseguir velocidades inimagináveis há 10 anos: “Se você conseguisse internet de 256 kb/s [via satélite] estaria satisfeito”.
Não é um serviço para todos
O plano básico da HughesNet tem velocidade de 10 Mb/s de download e 1 Mb/s de upload, ao custo de R$ 179,90 mensais. No entanto, o serviço não funciona como uma banda larga terrestre e há franquia de 10 GB para usar durante o dia e mais 40 GB durante a madrugada.
“A gente poderia ter planos com franquia ilimitada, mas ninguém pagaria. É necessário criar um balanço de custo e franquia que a pessoa consiga usar”, relata. “A gente tem planos de 10 GB a 80 GB no mês, mas a venda é muito concentrada no plano de 10 GB, simplesmente por causa do valor. Por mais que a gente faça bastante catequese [sobre uso de dados], esbarramos na realidade do mercado”.
Quem ultrapassa a franquia pode continuar conectado à internet, mas com velocidade reduzida a 1 Mb/s. Também é possível contratar pacotes adicionais, mas o valor cobrado pela HughesNet é bem salgado: o mais barato tem 1 GB de internet ao custo de R$ 17,90, enquanto o maior tem 10 GB e custa R$ 159,90.
Por ser um serviço caro e limitado, é difícil encontrar alguém interessado em contratar internet via satélite em locais onde há presença de banda larga terrestre. Numa capital, é possível encontrar planos com centenas de megabits por segundo por menos de R$ 100. A Hughes diz que 80% a 90% dos clientes se encontram em áreas rurais.
Perguntei a ele se há um limite máximo de antenas parabólicas penduradas, e Guimarães revela que não. “O limite é a divisão da banda. Tem que ter cuidado para dividir a capacidade de maneira inteligente: se coloco poucos assinantes, não tenho o retorno esperado; se coloco muitos e passo do ponto, os clientes começam a reclamar. É um ajuste fino, mais arte do que ciência para acertar o ponto ótimo”.
Atualmente, a Hughes tem entre 60 Gb/s a 70 Gb/s de capacidade no Brasil juntando três satélites. Um desses equipamentos veio da Yahsat, que se preparava para atuar no mercado brasileiro de banda larga, mas decidiu se juntar à concorrente.
O salto de uso de internet na pandemia
A pandemia fez com que muita gente dependesse ainda mais de internet. Isso não foi diferente no serviço via satélite: Guimarães revela que a demanda por conexão aumentou muito, e mesmo quem já era cliente passou a usar 30% a mais de forma repentina.
A adição do satélite da Yahsat foi importante para a Hughes, que viu uma explosão de tráfego com a chegada da pandemia de COVID-19: “A demanda de bytes trafegados na rede explodiu”, comenta.
As dificuldades do satélite: tributação e câmbio
O presidente da Hughes afirma que que grande parte dos esforços da companhia é tornar a banda larga via satélite mais acessível, melhor e com mais banda. “Aqui no Brasil temos as dificuldades ‘normais’ de ser uma empresa. Hoje, um terço do que o assinante paga para a Hughes vai direto para o governo. É algo chocante, se você fala isso para um gringo ele não entende”, diz Guimarães.
Os custos em moeda estrangeira também são outro empecilho: “A maioria dos nossos gastos é em dólar, e a gente não cobra nada em dólar do nosso cliente residencial. O satélite é em dólar, o terminal é fabricado fora do Brasil. Todo o risco cambial a empresa tem que assumir, cobramos em reais, com reajustes anuais baseados na inflação”.
A internet via satélite, pela perspectiva de um usuário
Para entender o outro lado, conversei com Edison Santiago, um desenvolvedor de aplicativos móveis que tem um sítio em Campo Mourão, no interior do Paraná. “O local está a 15 km da cidade, mas o serviço de celular é consideravelmente afetado por se tratar de um vale. Do alto do morro consigo enxergar os prédios da cidade e pegar sinal tranquilamente, às vezes até 4G, mas na casa não chega praticamente nada”.
Edison alega que assinou internet via satélite porque todas as outras opções decepcionaram, e não foi exatamente uma escolha. O plano contratado com a HughesNet tem velocidade de 15 Mb/s, mas há uma franquia de 20 GB e outro pacote de 20 GB para usar durante o período diurno: “Existem planos mais baratos com franquia extra durante a noite, mas como meu uso maior é durante o dia não fazia sentido pra mim”.
Antes da internet via satélite, Santiago tinha outras opções: “Eu tenho dois grandes problemas: o vento é muito forte no local, então usar qualquer antena direcional acaba sendo complicado porque o vento desalinha. O outro é que a casa fica em um vale, então para ter visada direta [termo técnico para descrever posicionamento de antenas de radiofrequência] para a cidade seria necessário usar uma torre”.
Ele relata que já usou internet via rádio, mas enfrentava problemas com antena desalinhando, falha de equipamentos e problemas do provedor. A internet móvel foi sua segunda opção, mas Edison disse que o sinal foi ficando cada vez mais fraco: “No começo eu conseguia sinal dentro de casa e utilizava um Vivo Box, mas hoje não funciona direito nem com uma antena externa”.
A diferença entre uma conexão de satélite ou terrestre
Perguntei a ele se é muito diferente usar internet via satélite: “Já estava ciente do ping alto (em torno de 700 ms a 800 ms), mas acreditava que isso afetaria apenas jogos online e outras coisas mais ‘imediatas’, quando na verdade ele afeta quase tudo. Consigo perceber lentidão na primeira requisição ao abrir algum aplicativo e até mesmo ao acessar as minhas câmeras de vigilância”.
Outra variação acontece durante chamadas de vídeo ou áudio (VoIP): “Fazer reunião foi uma experiência muito diferente. O delay de quase 1 segundo proporcionou alguns momentos engraçados, aconteceram travamentos tanto de minha parte quanto das outras. Mas agora eu passei a avisar sobre esse atraso e a reunião flui normalmente, com os participantes aguardando o outro terminar de falar.
Mesmo com os percalços, Santiago diz que consegue trabalhar tranquilamente usando a internet por satélite, porque não precisa de tanta banda para enviar seus códigos. No entanto, o desenvolvedor afirma que passa a maior parte do tempo em um local com internet fixa e já se acostumou a evitar downloads grandes e streaming enquanto está no sítio.
A expansão das redes celulares vai acabar com o satélite?
O leilão de frequências para o 5G deve ser realizado no próximo semestre, mas a Hughes não se intimida com isso: “[A quinta geração] é mais complementar do que ameaça. Vai ter situações em que uma cobertura celular vai chegar e, eventualmente, o consumidor deixa de usar o satélite. Particularmente acho que isso ainda vai demorar muito, o Brasil é muito grande, o território é extenso, não acredito que num futuro de 5 anos o país esteja totalmente coberto com sinal de celular”, disse o executivo.
Guimarães também enxerga as redes móveis como tecnologia como complementar, e afirma que cerca de 60% da receita B2B vem das operadoras de celular: “Há muitos locais onde a operadora vai colocar cobertura celular com backhaul via satéilte, porque é a maneira mais fácil de chegar. A operadora quer cobrir uma estrada, então coloca as estações rádio-base e conecta ao satélite, sem ter que puxar fibra ou montar um enlace de rádio”.
Esse modelo de torres conectadas via satélite é defendido pela TIM para atender locais remotos. A operadora apresentou o conceito de site unplugged, em que a antena de celular é alimentada por energia solar e escoa o tráfego através de uma parabólica. Guimarães não comentou quais operadoras são clientes da Hughes.
E a constelação da Starlink, de Elon Musk?
O setor deve mudar bastante nos próximos anos: a SpaceX mantém testes com uma constelação de satélites que vai fornecer serviços de internet comparáveis a uma fibra óptica terrestre. Durante o período beta, já em funcionamento nos Estados Unidos, a companhia de Elon Musk promete latência de 20 ms a 40 ms, e velocidades de 50 Mb/s a 150 Mb/s, sem limite de tráfego. A promessa é de chegada ao Brasil até o final de 2021.
“Do ponto de vista de funcionamento, não há nenhuma dúvida de que essas constelações funcionam”, diz Guimarães quando perguntado sobre como a Hughes enxerga a competidora. Ele comenta que sua empresa é sócia de outra constelação, a OneWeb, que tem capacidades similares.
No entanto, o modelo de negócios é uma incógnita para o executivo: “A grande dúvida é se algum dia isso vai ser viável do ponto de vista de custo. Nos Estados Unidos, por exemplo, a Starlink vende seu serviço por US$ 99 mensais, mais o valor do equipamento de US$ 499. Se você traduz isso no câmbio e coloca os impostos brasileiros, esses US$ 99 viram R$ 700 por mês, sem falar do valor inicial”.
“É uma empresa que não dá para subestimar, o Elon Musk conseguiu ser disruptivo em um monte de negócios”, comenta. “O novo satélite que chega no ano que vem traz mais capacidade para o Brasil, e a ideia é trazer planos com bem mais franquia e maior velocidade”
Perguntei para Edison se ele estaria disposto a ser cliente da Starlink: “Me inscrevi no beta assim que abriu, paguei a inscrição e estou torcendo para me selecionarem. Mas acredito que o valor máximo mensal que estaria disposto a pagar é entre R$ 300 e R$ 350”.
0 Commentaires