Entrar em uma fila de banco pode parecer completamente desnecessário para aqueles que já fazem tudo pela internet. A maioria dos serviços vem passando por um intenso processo de digitalização no último ano. As finanças foram quase em sua totalidade migradas para aplicativos e sites, sendo que as próprias instituições desestimulam a ida às agências. Porém, grande parte dos brasileiros ainda se encontra desconectada.
- Sem agências: o boom das carteiras e bancos digitais no Brasil
- Como o grande marketplace salvou o pequeno negócio
Os mais pobres, menos letrados e idosos recorrem às lotéricas e aos bancos físicos para receber salário, auxílio emergencial, pagar contas e administrar suas finanças. Como consequência, essas pessoas são obrigadas a se expor ao vírus para realizar todas essas tarefas, enquanto os recursos digitais não são tão facilmente acessíveis para elas.
De acordo com a pesquisa TIC (Tecnologias de Informação e Comunicação) de 2019, 45% das famílias cuja renda é de até 1 salário mínimo não possuem nenhum tipo de acesso à internet. No total, 28% dos domicílios brasileiros ainda estão totalmente desconectados.
A pesquisa relatou a digitalização de uns e a dificuldade de outros. Entre usuários de internet com mais de 16 anos, 83% das pessoas das classes A e B usaram e-commerce no ano passado, representando um salto de 144% desde 2018. Porém, o mesmo índice para as classes D e E ficou em 44%.
A barreira digital do Auxílio Emergencial
Simone Morente, de 49 anos, contou ao Tecnoblog que tentou três vezes solicitar o auxílio emergencial, tendo sucesso somente na última tentativa. Ela diz que nem sequer sabe qual era o problema e não encontrou informações claras ou suporte nos aplicativos da Caixa. Como resultado, das nove parcelas do benefício distribuídas ao longo de 2020, Simone deixou de receber quatro delas pelas dificuldades que teve e pelo processamento demorado.
Ela faz parte dos 59% dos solicitantes do auxílio emergencial que, até agosto de 2020, não tiveram sucesso em receber o benefício. Além disso, 28% deles relataram dificuldades em acessar, utilizar e entender os aplicativos “Auxílio Emergencial” e “Caixa Tem”, criados pelo governo federal.
“Eu acesso (os aplicativos da Caixa) pelo celular e quando não consigo peço para meu filho fazer isso para mim. É que não entendo muito sobre como mexer na internet, sites e essas coisas, então meu filho me ajuda”, ela contou.
Mãe solteira de dois filhos, Simone ficou desempregada assim que a pandemia começou. Anteriormente, ela trabalhava como garçonete em uma pizzaria em Angra dos Reis (RJ). De acordo com as condições de recebimento do auxílio emergencial, ela teria direito a cinco parcelas de R$ 1.200 e outras quatro de R$ 600. Porém, mesmo tendo realizado seu cadastro assim que a Caixa disponibilizou os aplicativos em abril de 2020, ela só foi aprovada e recebeu seu primeiro benefício em setembro.
Além disso, por algum motivo não revelado, o sistema entendeu que Simone não se enquadrava como mãe solteira para receber as parcelas maiores. No final das contas, mesmo tendo procurado ajuda nos aplicativos, na internet e por telefone, Simone ficou com cinco auxílios de R$ 600 em 2020, sem nunca saber as razões para tantos transtornos e angustiada por perder o dinheiro que tanto necessitava e sabia ter direito.
Finanças tradicionais são preferidas mesmo com internet
Simone diz nunca ter tido muita afinidade com tecnologia de maneira geral. Ela possui um smartphone com acesso à internet e sua casa também tem Wi-Fi, mas mesmo assim dependeu da ajuda de seu filho mais velho para conseguir realizar todos os processos cadastrais do auxílio emergencial.
O Painel TIC COVID-19 de 2020 monitorou o comportamento digital da população durante a pandemia. De acordo com os dados encontrados, das pessoas que possuem pleno acesso à internet, 28% delas parecem não ter migrado suas finanças para o digital. Serviços relacionados à previdência social (como INSS, FGTS, seguro-desemprego, auxílio emergencial ou aposentadoria) ainda foram todos realizados pessoalmente, mesmo com a possibilidade de fazê-los através de aplicativos ou websites.
A barreira à digitalização se estende para além da própria dificuldade de Simone. Felizmente, ela conseguiu um emprego em 2021 como auxiliar de cozinha em um restaurante em Mogi das Cruzes (SP). Ela recebe um pouco mais de um salário mínimo e seu empregador a paga em dinheiro vivo, o que a desestimula ainda mais a depositar o montante e administrá-lo através de aplicativos. Sua única conta bancária é na Caixa e ela acredita que os serviços virtuais são complicados.
Mesmo diante da atual pandemia de COVID-19, Simone se sente mais confortável e segura em guardar seu salário em dinheiro vivo em seu apartamento e realizar todos os pagamentos de contas e compras do dia a dia fisicamente. Dessa maneira, todo mês ela faz algumas visitas a lotéricas da região onde mora. Como atualmente ela trabalha com carteira assinada, não foi aprovada para o auxílio emergencial de 2021.
“Saio do serviço e passo direto na lotérica. Para mim é mais fácil do que chegar em casa e ter que usar o aplicativo do celular, prefiro o dinheiro físico na mão. Me pediram para criar o Pix, mas também não sei como fazer”, disse Simone.
Ela acredita que o sistema financeiro falhou com a população com menos acessibilidade à internet e a equipamentos tecnológicos durante a pandemia. “O banco tinha que ter arrumado um jeito mais fácil, se eu estava precisando, imagina essas pessoas que realmente estavam sem emprego nenhum. O governo tinha que ter feito de uma maneira que chegasse com facilidade esse auxílio para as pessoas que realmente precisam”.
Idosos perdem o controle de suas finanças
Os problemas da falta de conexão se evidenciam ainda mais na população idosa do Brasil. Maria (nome fictício), conversou com o Tecnoblog sob a condição de anonimato. Com 78 anos de idade, ela já não enxerga bem nem mesmo com seus óculos mais recentes. Com problemas cardíacos crônicos e idade avançada, ela não sai de casa para absolutamente nada há mais de um ano, mesmo já tendo sido vacinada.
Viúva, ela mora sozinha no interior de São Paulo e sempre administrou toda a sua vida financeira sem a ajuda de ninguém. Sua independência desapareceu rapidamente após o início da pandemia e ela se viu obrigada a recorrer ao auxílio de seu único filho, com o qual não mantinha uma boa relação desde a morte de seu marido.
Maria sempre foi caminhando até à Caixa Econômica Federal mais próxima de sua casa para receber a sua previdência. Ela tem um celular adaptado para idosos, com números bem grandes, que serve apenas para ligações. Antes de seu marido falecer em 2019 ela até pagava internet para fazer videochamadas através de um velho notebook que mantém sob a escrivaninha de sua sala de estar. Porém, com seus problemas visuais, deixou de utilizar a máquina há anos.
Juntando sua renda de costureira aposentada com a de seu marido, ela diz que recebia cerca de R$ 4.000. Com um aluguel barato, suas contas e despesas mensais geralmente consumiam apenas metade de sua renda. O restante ela guardava em um cofre em sua casa e se permitia algumas “extravagâncias” que compartilhava com suas amigas da igreja e da vizinhança.
“Eu sempre fiz tudo sozinha na minha vida, nunca dependi de ninguém. Mesmo quando meu marido estava vivo, era eu que administrava as contas da casa, fazia mercado, ia todo mês na lotérica pagar água e luz. Agora, sem poder sair, meu filho tem que fazer tudo isso para mim, inclusive sacar minha aposentadoria”.
Porém, Maria se mostra muito insatisfeita sobre como as coisas estão funcionando agora. Ela diz nem saber mais quanto recebe, pois ela nunca vê seu dinheiro na totalidade. Seu filho saca sua aposentadoria, paga todas as contas, faz o mercado, compra seus remédios, e geralmente diz que “sobrou” cerca de R$ 200 ou R$ 300. “Eu acho horrível pensar isso, mas tenho quase certeza que ele está embolsando uma parte do meu dinheiro e eu não posso fazer nada. Não tenho condições de questionar ele”.
Mesmo com graves suspeitas, Maria diz estar impotente nesse momento. “Já tentei pedir para ele prestar as contas direito para mim, mas ele me encheu de recibos que eu não consigo ler por causa da minha visão e me falou vários números que eu não consigo entender”, afirmou a aposentada.
A digitalização de uns, a exclusão de outros
Os casos de Simone e Maria são apenas duas realidades que representam problemas muito mais abrangentes no Brasil. Enquanto os serviços caminham para a total digitalização, especialmente em tempos de distanciamento social, grande parcela da população está mais excluída do que nunca.
A taxa de analfabetismo no Brasil ainda é de 6,6%, de acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2019. Isso se soma a 45% das famílias pobres que não possuem nenhum tipo de acesso à internet e a 10,15% da população brasileira que já ultrapassa os 65 anos de idade, de acordo com projeções do IBGE. Todos esses fatores contribuem para formar um país essencialmente desconectado, acentuado ainda mais a desigualdade social que obriga pessoas a se exporem em filas de banco e lotéricas.
Maria conclui a entrevista com um importante questionamento: “Eu acho ótimo que existam todas essas coisas na internet, facilita a vida das pessoas. Mas e gente como eu? E os idosos que têm dificuldade em andar, ler e entender tudo isso? E quem nem sabe usar essas coisas? Como que a gente fica?”
A bancarização chegou, mas a digitalização continua atrasada
0 Commentaires