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Free Fire nas aldeias: como um torneio inclui indígenas no cenário gamer

Copa das Aldeias traz Free Fire para os povos indígenas no Brasil (Imagem: Vitor Pádua/Tecnoblog)

Copa das Aldeias traz Free Fire para os povos indígenas no Brasil (Imagem: Vitor Pádua/Tecnoblog)

Acessibilidade e expansão do alcance dos games já foram temas que apresentei em outros textos meus aqui, no Tecnoblog – e muita gente parece colocar isso em prática de fato. Um dos bons exemplos é a Copa das Aldeias, de Free Fire, voltada para a comunidade indígena no Brasil. A iniciativa parece “diferentona”, pois é mesmo – é única no momento, ainda que não seja inédita.

Fui pego de surpresa quando me deparei com o Copa das Aldeias, ao produzir uma notícia. Por mais que pensemos que o Free Fire, por si só, seja um jogo acessível, jamais imaginamos a totalidade de seu alcance e penetração em grupos de pessoas que, por vários motivos, estão mais afastadas das principais rodas de discussão e da atenção da mídia e outras camadas da população

Assim tive a ideia de conhecer mais, saber como funciona, quem organiza e quais os planos para o futuro da Copa das Aldeias, que é apenas uma das muitas copas e torneios organizados por diversas comunidades pelo Brasil – e não apenas indígenas.

Foi para isso que resolvi conversar com Igor Gabriel Santos De Souza, ou simplesmente “Igor Cai por Terra”, como é mais conhecido em seu streamings e em toda a comunidade do Free Fire. É dele a organização e também transmissão da Copa das Aldeias, que atualmente finalizou sua terceira edição e já se encaminhando para uma quarta.

Parte da guilda Mafia TKG, participante do torneio, de etnias Terena e Tupi-Guarani, alguns dos participantes do torneio (Imagem: Reprodução)

Parte da guilda Mafia TKG, participante do torneio, de etnias Terena e Tupi-Guarani, alguns dos participantes do torneio (Imagem: Reprodução)

Mas como um jogo de celular, no estilo Battle Royale, atraiu a atenção de tanta gente, ao ponto de chegar em comunidades indígenas que nem estão no mesmo estado? É hora de entender melhor tudo isso, começando por onde o game se propaga com grande facilidade.

Um local para a aldeia

A Copa das Aldeias é totalmente online. Com o apoio de redes sociais, como Instagram e Facebook, Igor faz sua própria divulgação, munido de assessoria de imprensa da plataforma onde escolheu transmitir, a Nimo TV.

A Nimo, para quem não conhece, é mais uma plataforma de streaming que tem feito enorme sucesso entre o público jovem, ao lado de grandes nomes como Twitch e a Booyah – esta última, aliás, especializada em Free Fire, mas aberta a outros títulos.

Free Fire também é uma parte importantíssima na Nimo. O jogo sempre figura entre mais mais jogado. Aliás, entrar na seção de “Top Jogos” da Nimo te leva a entender com certa facilidade o apelo que a plataforma tem entre os jogadores – Free Fire, Mobile Legends, League of Legends e Valorant são alguns dos títulos mais populares. Games gratuitos e, em alguns casos, compatíveis com computadores ou celulares mais modestos.

NimoTV, hoje, é principal palco da Copa das Aldeias (Imagem: Reprodução)

NimoTV, hoje, é principal palco da Copa das Aldeias (Imagem: Reprodução)

A pandemia, claro, contribuiu para um incremento no consumo deste tipo de conteúdo. Em 2020, a Nimo TV registrou crescimento de 20% no número streamers e de 25% na audiência da plataforma. Cada pessoa que assistiu as transmissões ficou conectada em média 50 minutos por dia e os games mais assistidos foram Free Fire, GTA 5, Valorant, Among Us e League of Legends.

Há 25 milhões de usuários na Nimo pelo mundo, sendo que 60% deste número está no Brasil! Por aqui a plataforma também teve mais de 200 campeonatos amadores e profissionais transmitidos, o que representa um aumento de 80% para a plataforma, quando comparado com 2019. Só de Free Fire foram 120 torneios gerais realizados.

Somamos isso ao fato de Free Fire ser extremamente acessível em termos técnicos. É bem comum ver essa afirmação em matérias envolvendo o jogo, pois não é algo tão difundido por aí. Ele requer “apenas” um celular com Android 4.1 (estamos na versão 11 do sistema) ou com iOS 8.0 (estamos na 14.4). Mesmo se a pessoa tiver um iPhone, que é mais caro, pode tirar proveito com aquele iPhone de 2015, bem velhinho, mas funcional.

Assim temos uma boa receita para aumentar o alcance: jogo divertido, grátis e leve, aliado a uma plataforma voltada para o público jovem, amigável a streamers e com incentivo a torneios e campeonatos diversos.

Para a Copa das Aldeias existir, só faltaram os protagonistas.

Cai Por Terra entra em cena

Igor Cai Por Terra tem 23 anos e é morador de Belo Horizonte, em Minas Gerais. Foi dele que partiu a iniciativa de criar um torneio voltado para indígenas de todo o Brasil. Apesar de ele mesmo não ser indígena, viu a necessidade por ser morador de comunidade e entender as dores de viver em uma realidade bem longe de locais e acessos privilegiados.

Igor Cai Por Terra é criador e organizador da Copa das Aldeias (Imagem: Reprodução)

Igor Cai Por Terra é criador e organizador da Copa das Aldeias (Imagem: Reprodução)

“Sou narrador de esports há três anos, narro Free Fire desde então. Foi nesse trabalho que conheci o povo indígena, dentro de uma narração minha, quando conheci um rapaz tupi-guarani. Ele falou que me viu fazendo narração e pediu para dar uma atenção maior ao povo indígena”, contou Igor, conversando comigo.

O narrador e streamer diz ainda que, depois deste contato inicial, ficou alguns meses sem se falar com o amigo indígena, mas que estreitou relações com a Nimo TV, o que fez com que ele pudesse pleitear a ideia que nascera na ocasião – um torneio exclusivamente para os povos nativos.

“Eu falei que conhecia a galera, que tinha afinidade com alguns jogadores indígenas e a Nimo topou a ideia. Ao lado de outra empresa, a Smile One, eles apoiam o torneio com toda a estrutura online e também doam cartões que servem para a premiação. Distribuímos R$ 2 mil entre os cinco primeiros colocados, por enquanto, mas temos planos de aumentar para R$ 10, R$ 15 ou R$ 20 mil talvez!”, explicou.

Como a Copa das Aldeias ainda está em sua quarta edição, sendo um torneio mensal, pode-se dizer que o projeto está iniciando sua caminhada. Igor destacou que existem torneios na plataforma que têm o “prize pool”, termo técnico para o valor distribuído entre vencedores, de até R$ 70 mil. “Isso traz competitividade e é muito bom, além de ter a chance de dar algum destaque para os jogadores, eles podem virar influencer e ganhar mais dinheiro por fora”, lembrou o narrador.

E este destaque externo foi justamente o que aconteceu com uma das Guildas – como são chamados os times de Free Fire, em geral – do Copa das Aldeias. Os WK Walkers – Gabriel, Naubert, Darllan, e Eric – foram contratados pela NQT Elite, a primeira a contratar um time exclusivamente indígena no circuito principal do jogo.

Como funciona o torneio?

Igor explica o funcionamento da Copa das Aldeias, que é a mais simples possível: Cada time, ou guilda, apresenta sua escalação de cinco jogadores – sendo um deles o reserva, que se inscreve com o apelido escolhido, preenche dados pessoais e locais, manda foto e vídeo com documentação, para provar a etnia. A terceira edição da Copa, aliás, contou com nada menos que 288 guildas, todas compostas apenas por indígenas.

De fato, são muitos inscritos, e de todo o Brasil: Paraná, Mato Grosso do Sul, Maranhã, Rio Grande do Sul, São Paulo, Minas Gerais, Santa Catarina, Pará, Rio de Janeiro, Rondônia, entre outros. Entre algumas das etnias participantes estão Kaigang, Kaiowá, Guaraní, Karajá, Xakriabá, Kalapalo, Paresí, Amondawa, Xokleng, Sabanês e mais.

Aldeia Bracuí, no Rio de Janeiro, acompanhando a transmissão da Copa das Aldeias (Imagem: Reprodução)

Aldeia Bracuí, no Rio de Janeiro, acompanhando a transmissão da Copa das Aldeias (Imagem: Reprodução)

Com todas as guildas inscritas e verificadas, o torneio começa com partidas entre as equipes, utilizando o já conhecido sistema de pontos corridos, vindo de outros esportes tradicionais. Os seis primeiros classificados avançam para a próxima fase, que é eliminatória. Assim seguem até as semifinais e depois as finais.

Cada equipe joga de suas respectivas casas, seja na cidade ou na aldeia. “Qualquer indígena pode participar, de cidade ou de aldeia, mas a grande maioria é de aldeia. Isso também rende alguns problemas, pois nem todos têm celular, aí usam o aparelho emprestado de algum membro da família. Outros precisam caminhar alguns quilômetros para conseguir um sinal de 3G ou 4G forte para o jogo, mas todos conseguem participar sempre”, comentou o organizador.

Igor conta também que criar a Copa das Aldeias rendeu seus desafios. Ele começou a organizar o torneio sozinho, mas com tanta gente participando, viu que era necessário expandir o time e hoje conta com 11 pessoas, incluindo pessoas indígenas, que também cuidam de outros pontos, como as redes sociais e mais elementos da produção.

Apoio indígena

Além das pessoas que ajudam na organização, Igor conta também que, hoje, busca um apoio mais amplo de comunidades indígenas para a iniciativa.

“Pelo fato de eu não ser indígena, às vezes rola uma barreira, uma insegurança por ter alguém que não é parte deles, falando por eles. Mas hoje em dia a maioria já nos conhece, já aderiram e respeitam a ideia. Na maioria os jovens são conquistados pelo apelo do jogo, os mais idosos ficam receosos, mas hoje muitos deles já estão do nosso lado”, disse.

O organizador também revela que muitos caciques e líderes já gravaram vídeos apoiando a Copa e que vem tentando falar com organizações oficiais para aumentar a exposição do torneio. “Além do game, queremos fazer uma outra estratégia que é entregar cestas básicas dentro das aldeias. Eles gostaram da ideia e vamos organizar algo assim. Tenho o plano de realizar os sonhos dessas pessoas através do game, ajudando a propagar a cultura deles para o mundo através do game”, adicionou.

Ele garante ainda que a Copa das Aldeias não visa atrapalhar, apenas somar. “Cai Por Terra” relata que além dos estudos, todos os jogadores indígenas têm suas próprias tarefas em suas comunidades, por isso os horários de treino são flexíveis e acontecem entre as próprias equipes. “A Copa das Aldeias transborda o competitivo fomentando a união, a colaboração e a confraternização entre os povos”, finaliza.

Iniciativa também visa apoiar defesas e divulgações de causas indígenas (Imagem: Reprodução)

Iniciativa também visa apoiar defesas e divulgações de causas indígenas (Imagem: Reprodução)

No Instagram e em outras redes sociais do torneio, essas preocupações são expressadas em forma de posts que chamam a atenção para causas indígenas, como lutas contra violações sofridas no Brasil e no mundo, incentivo para vacinação contra a COVID-19, entre outros.

O que dizem os indígenas?

Esta talvez seja minha parte favorita da matéria, pois foi a mais curiosa de produzir em termos de dificuldade. Explico: claro que, para falar sobre um torneio indígena de videogame, é necessário falar com os próprios protagonistas. Mas esta foi uma missão… Complicada de concluir.

Este é um dos poucos eventos de videogame voltado para etnias indígenas já realizados e há ainda menos pessoas falando diretamente com os participantes, dando voz, além de publicar uma mera nota sobre sua realização. Talvez por estes motivos, ou desconfiança, ou um certo nível de timidez, eu tenha encontrado uma certa dificuldade em conversar com os participantes do torneio.

Não dá para culpá-los, com toda a certeza.

Igor e assessoria de imprensa da Nimo TV tentaram de todas as formas e felizmente me colocaram em contato com uma das participantes, a jovem Luna, ou Mirim Gonçalves, de 22 anos. Ela esteve na terceira edição da Copa das Aldeias, onde conquistou o quinto lugar com bastante garra, entre as mais de 280 equipes.

Luna, ou “9â Luna”, é de Palhoça, Santa Catarina, da etnia Guarani. Ela jogou pela guilda 9ângulos, em uma equipe totalmente feminina. Tímida, mas extremamente comunicativa e com vontade de falar sobre sua carreira de pro player, ela me contou que conheceu Free Fire pelos irmãos e que não tinha muito tempo para jogar – a jovem também é professora na escola na aldeia onde mora.

Luna é uma Guarani de Santa Catarina (Imagem: Reprodução)

Luna é uma Guarani de Santa Catarina (Imagem: Reprodução)

Professora, jogadora profissional e gamer nas horas vagas, claro. Luna diz que gosta de outros jogos, mas só Free Fire roda bem no celular que ela tem ao alcance, o que nos leva ao que afirmei na abertura desta matéria.

Ela divide seu tempo entre as aulas e os treinos. “Trabalho de dia e à noite eu treino. É um pouco puxado, mas tô conseguindo. Ainda sobra um tempo para aproveitar com a família”, disse a jovem Guarani, que começou há pouco tempo e já se considera uma pro do Free Fire.

“Jogo há um ano mais ou menos. Com a pandemia comecei a dar aula online e tive mais tempo pra entrar no jogo. Quando comecei, gostei pois fiz amigos de todos os estados e comecei a jogar com meus parentes que moram longe”, contou Luna.

Apenas para explicar: a expressão “parente” é muito usada pelos povos indígenas, no Brasil, quando se referem uns aos outros, mesmo que não compartilhem do mesmo sangue. O que dá ainda um novo significado para a relação familiar que jovens indígenas, como Luna, estão criando por meio do Free Fire e de jogos eletrônicos.

Ela também relata que o torneio e o game a ajudaram a se reafirmar no mundo como uma mulher participante neste meio. “Gostei de estar jogando como uma mulher no mundo gamer, estar representando as meninas. Por isso criei minha ‘line’ que é feminina, pois tem poucas meninas que jogam, quero incentivar outras”, adicionou.

Luna também conta que enfrentou dificuldades, de início, para começar a jogar. E não apenas por ter seu compromisso com a escola da aldeia. “No começo meu pai tinha achado ruim, por conta da nossa cultura, mas acabou aceitando. Hoje não perde nenhum campeonato nosso e fica torcendo, agora tá de boa, já que todos os filhos estão jogando e participando do campeonato”, contou a jogadora.

Ela também completa dizendo que está muito satisfeita com a colocação que sua guilda alcançou no último torneio, pois representou uma grande evolução. “Vou participar das outras edições, vamos treinar mais pra mostrar nossa jogabilidade e chegar na final”, adicionou.

Por fim, ela deixa seu recado:

“Meu recado pra outras pessoas que querem participar é pra não desistirem. Não é algo errado. É que algumas pessoas não jogam por causa da nossa cultura, que tem várias leis e essas coisas. Não quer dizer que quem joga vai esquecer sua cultura. Podemos mostrar isso através dos jogos entre outras coisas”.

– Mirim Gonçalves, ou Luna, 22 anos, jogadora profissional indígena de Free Fire

Tem mais?

A Copa das Aldeias é uma das poucas iniciativas de torneio de videogame focadas em indígenas, mas não é a única.

Em setembro de 2020 também aconteceu o primeiro – e até agora único – Torneio Indígena de Free Fire, com 56 participantes, distribuídos entre 14 equipes de oito etnias. A iniciativa foi do Movimento da Juventude Indígena de Rondônia e premiou os vencedores, da guilda do povo Cinta Larga, com R$ 200.

Ao jornal O Globo, Walelasoepilemãn Cristovão Surui, organizadora do evento, também afirmou que a conectividade foi um problema e que a ideia era ter um torneio com vários jogos, mas o Free Fire foi escolhido por rodar em praticamente qualquer celular e não exigir tanta rede.

Foi também ao O Globo que a organizadora comentou algo similar às afirmações de Luna: “A gente tenta conciliar, mostrar que a tecnologia e a cultura têm que andar lado a lado. Nós temos que manter a nossa cultura, mas também podemos mexer com a tecnologia, E ela é muito importante, porque é por meio da tecnologia que estamos mostrando para o mundo quem nós somos”.

Por ora, não há novidades aparentes relacionadas ao Torneio Indígena de Free Fire, mas a próxima edição da Copa das Aldeias começa no mesmo dia em que está matéria é publicada: 8 de março de 2021. Serão 16 dias de partidas, com previsão de 192 equipes participantes. A premiação, até então, será a mesma: R$ 2 mil entre as guildas vencedoras.

Free Fire nas aldeias: como um torneio inclui indígenas no cenário gamer

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